Indústria, trabalho e capital

Fábio Melo*


O recente caso da Ford, que vai fechar 3 montadoras até o final de 2021, traz a grande questão da industrialização no Brasil recente. Ocorre que, muitos analistas só apontam a questão da indústria a partir do capital e não do trabalho. 

É certo que, desde o impulso industrial de Getúlio Vargas, nas décadas de 1930 e 1940, o Brasil não tem uma política séria de industrialização. Alguns governos até incentivaram a indústria (alguma coisa com Juscelino Kubitschek, que abriu ainda mais o Brasil para o capital estrangeiro; ou os militares com a Zona Franca de Manaus), mas por outro lado não houve nenhum tipo de avanço no que diz respeito ao trabalho: salários com pouco poder de compra. Com o avanço neoliberal, no final dos anos 1980 e ao longo de todas décadas de 1990 até os dias de hoje (2021), direitos trabalhistas foram flexibilizados e/ou destruídos (desmonte trabalhista de 2017 que alguns chamavam de "reforma"). Isso coloca a questão primordial da indústria no Brasil: Sem trabalhadores bem remunerados, com amplo poder de compra, não há mercado para absorver os produtos oriundos das indústrias. 

Vamos pensar na realidade brasileira. Os números oficiais apontam mais de 30 milhões de desempregados. Esse número pode ser muito maior se considerarmos os milhões de trabalhadores e trabalhadoras que se dizem "microempreendedores" ou os uberizados, precarizados, que não tem renda fixa. Neste cenário, o trabalho formal, com garantias como boa remuneração e estabilidade, é a exceção no Brasil não a regra. Assim sendo, como o nosso país pode criar e manter indústrias? 

O exemplo da própria indústria automobilística diz muito. Quantos brasileiros têm dinheiro para comprar tranquilamente um carro zero km de 50 ou 60 mil reais? Quantos brasileiros vivem com mais de 5 mil reais ao mês para ter esse poder de compra? A resposta está nas ruas, nas filas de desempregados e desalentados do país. E mais. A indústria automobilística depende de vários insumos que compõe um automóvel. Se uma montadora parar afeta imediatamente outros setores na cadeia produtiva, e outros trabalhadores e trabalhadoras que vão perder também.

O caso da Ford só reforça a crescente política desindustrializante brasileira. A montadora estadunidense (que se instalou no Brasil em 1919) é só mais uma entre grandes multinacionais que vão deixar o país, ou estão em processo, como a alemã Mercedez-Benz e a japonesa Sony. 

Alguns picaretas metidos a analistas econômicos ainda vão além: dizem que o problema é o chamado "Custo Brasil". Mas que "custo é esse"? O Brasil é um paraíso para os neoliberais. Nenhum país do mundo tem um "teto de gastos" que coloca dinheiro (muito dinheiro) no capital improdutivo especulativo, ao invés de jogar na produção. O Brasil tem uma das maiores taxas de juros do mundo. Sem falar que empresas multinacionais se instalam em nosso país e recebem muitos investimentos (de bancos públicos) e isenções fiscais. Um exemplo é a própria Ford, que desde que se instalou em Camaçari (Bahia) já recebeu mais de 20 bilhões em incentivos fiscais!

Todas as receitas liberais e neoliberais falharam. Só contribuíram para que o Brasil se insira mundialmente como exportador de matérias primas (as commodities). Ou seja, ainda somos uma colônia de exploração.

Isso significa que o Brasil precisa atrair as multinacionais? Não! Significa que o Brasil precisa investir em seu próprio parque industrial, investir dinheiro em ensino, pesquisa e tecnologia; ao mesmo tempo a esquerda precisa propor uma nova política trabalhista, que assegure empregos dignos, com estabilidade, bons salários (vale lembrar que o salário mínimo no Brasil é R$ 1.100, mas para um trabalhador viver bem deveria ser mais de R$ 4.000) e aposentadorias. O Estado, muito criticado pelos vigaristas liberais que querem o "estado mínimo", precisa estar junto: sem Estado forte não há capitalismo ("forte" no sentido de atuar na regulamentação econômica, investindo onde é preciso, atuando em políticas de bem-estar social e não no sentido de Estado autoritário, absolutista).

Junto com essa política industrial e trabalhista também não se pode abrir mão de pensar no meio ambiente. Antigamente muitos políticos e economistas acreditavam que era preciso destruir a natureza para ter um grande desenvolvimento industrial e econômico. Hoje em dia já não é bem assim e o país que conseguir equilibrar a conservação do meio ambiente com políticas industriais desenvolvimentistas, vai estar na vanguarda. 

É isso que o país precisa. E obviamente não é a turma de Bolsonaro e Paulo Guedes que colocarão essas políticas em prática. Muito pelo contrário, eles atuam justamente para acabar com qualquer política social e industrial; em relação ao meio ambiente, o governo Bolsonaro tem se mostrado o mais nocivo das últimas décadas.

Uma certa "esquerda economicista", embora muitas vezes bem-intencionada, precisa abandonar de vez o "fetichismo desenvolvimentista" e pensar no trabalhador e na trabalhadora. Industria doméstica não cresce sem gente com poder de compra. 

A esquerda nacionalista, popular e democrática, precisa propor uma política industrial para o Brasil ao mesmo tempo que propõe uma política trabalhista, para assegurar bons salários, estabilidade e aposentadorias. Indústria forte sem trabalhadores e trabalhadoras estáveis e bem remunerados é como um carro 0km sem motor. E também não pode esquecer da pauta ambiental, que no Brasil está em verdadeiro colapso com o desgoverno Bolsonaro. 


REFERÊNCIAS:

HARVEY, David. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2016. 

DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

KISHTAINY, Niall. Uma breve história da economia. Porto Alegre: L&PM, 2018.

MARTINEZ, Paulo. Multinacionais: desenvolvimento ou exploração? São Paulo: Moderna, 1993. 

RAWORTH, Kate. Economia Donut: uma alternativa ao crescimento a qualquer custo. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.

ROSS. Jurandyr L. (org.). Geografia do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2019. 


Historiador. Professor de escola pública. Membro do Núcleo Trabalhismo21 de Porto Alegre.





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