A ATUALIDADE DO PENSAMENTO DE PAULO FREIRE NO CENÁRIO DA PANDEMIA DA COVID-19.


Cleber Melo da Silva*

No Brasil, já se passaram 100 dias da suspensão das aulas presenciais devido à pandemia de Covid-19. Muitos lugares no mundo ainda permanecem sem aulas, os que que retornaram, tiveram de voltar atrás devido ao aumento do contágio entre estudantes, famílias e trabalhadores da educação.
As incertezas tomam conta do momento: quando vamos retornar? Como será esse retorno? O ano letivo será prorrogado? O ano letivo será suspenso? As atividades remotas serão equivalentes aos dias/carga horária? Nesse momento e em um eventual retorno, qual deve ser a prioridade pedagógica? As características epidemiológicas e a inoperância absoluta do Ministério da Educação – causando mais insegurança para as já desorientadas secretarias de educação, contribuem para o cenário de incertezas.
É no momento de crise que recorremos aos “ombros dos gigantes” para enxergarmos além do nosso próprio horizonte. O contexto pré-crise, peri e pós-crise nos exige um reencontro com um dos maiores educadores brasileiros de todos os tempos: Paulo Freire. O que o pensamento de Freire tem a nos dizer sobre os desafios permanentes vividos pela educação brasileira, em especial no contexto de pandemia?

Do método à concepção de educação
Foi em Angicos (RN) que o pernambucano Paulo Freire começava a entrar para a história do pensamento pedagógico brasileiro, com reconhecimento – posterior – internacional. O método Paulo Freire – que a rigor poderia ser considerada uma filosofia de educação - logrou êxito na alfabetização de 300 trabalhadores rurais em 45 dias. E desde então, o educador foi ganhando destaque no cenário nacional e internacional ao desenvolver importantes políticas e ações de alfabetização no Brasil e na África.
O método consiste em três etapas: investigação, tematização e problematização. A primeira se sustenta na descoberta do universo vocabular dos sujeitos, onde são levantadas as palavras e temas geradores relacionados com a vida cotidiana dos alfabetizandos e do grupo social a que eles pertencem. Encontros informais, visitas ao lugar, convivência com a comunidade compõe essa ação. Em um segundo momento são codificados e decodificados os temas levantados na fase de tomada de consciência. E por último, a reflexão crítica do contexto vivido, vivenciando uma filosofia da práxis, no sentido de sermos parte da transformação da realidade em que vivemos.
Entretanto, o aspecto central – e que levou Paulo Freire ao exílio – foi a concepção de homem, sociedade e educação do qual o método é fruto. Para o educador de Angicos, o homem é um sujeito político, crítico e ativo da sua realidade e da sua aprendizagem. O educando é o centro da proposta, rompe-se com a ideia de que o professor é o dono do saber e o estudante é o alumno – o ser sem luz. Esse é um componente decisivo dessa filosofia de educação, o ato de educar deve ser um ato de liberdade e de consciência crítica de si e do mundo. A alfabetização é um ato político (no sentido filosófico e não partidário) pois a leitura do mundo precede a leitura das palavras. Ler não é apenas uma técnica, mas sim um ato de compreender signos e significados sociais.
Esse pensamento basilar da filosofia de Paulo Freire é indispensável para o contexto atual. As crises vividas pela humanidade - seja ela sanitária, econômica, política, social ou ambiental - exige uma nova reflexão e atitude da educação, pois educar não é transmitir informações, mas sim, formar uma nova geração com valores humanistas. Ética, respeito as diferenças, democracia, liberdade, diálogo, cidadania. As soluções das crises vividas por nós encontram-se nas pessoas e nas suas capacidades de transformar a si e ao mundo. São as pessoas que podem vencer o vírus, o desmatamento, a desigualdade, o desemprego. E só o faremos se estivermos conscientes do nosso papel na sociedade. E a escola é o espaço privilegiado da consciência crítica e social. É exatamente este componente: a educação reflexiva/crítica/política que desperta a rejeição – e as vezes as calúnias – daqueles que querem manter sua condição de privilegiados na sociedade.

Por uma pedagogia do diálogo
Paulo Freire, humanista e militante, parte da ideia que é possível engajar a educação em um processo de conscientização e de movimento que conduza o país ao desenvolvimento e a superação de uma cultura colonial. Em “Educação como prática da liberdade” desenvolve o conceito de consciência transitiva crítica entendendo-a como a consciência articulada com a prática. Para Freire, o diálogo, a fala, a palavra é parte fundamental desse processo de desenvolvimento. O diálogo é uma relação horizontal e nutre-se de amor, humildade, esperança, fé e confiança. Sua concepção dialógica parte da relação de respeito aos educandos, a escuta das urgências e a tolerância como virtude de conviver com o diferente.
É, no pensar a relação entre educação e o processo de humanização, que Paulo Freire opõe concepção bancária e concepção problematizadora. A primeira é o diálogo vertical, onde o professor é o que pensa, o que prescreve, o que diz. O estudante é alumno, que acata, obedece e escuta silenciosamente. É a prática do autoritarismo, do conteudismo, da imposição, da ausência de liberdade, da apatia (muitas vezes travestida de indisciplina) gritante vivida nas salas de aulas, em especial entre adolescentes.
A concepção problematizadora é o diálogo com ‘d maiúsculo’. Participação, engajamento, consciência coletiva, comunhão entre os pares e entre educador-educando. A escola é o lugar do sujeito, do singular, que em comunhão com os pares, se desenvolve, vive, cria e transforma a si e ao mundo. O conhecimento está a serviço da humanização. O “ser” precede o conhecer. E é conhecendo que nos tornamos “ser” critico, reflexivo e humano.
A pedagogia dialógica de Paulo Freire está absolutamente atual. O Cenário de crise sanitária nos colocam importantes dilemas: A morte de familiares, de amigos ou conhecidos, o medo da própria morte, o isolamento, a insegurança, o desemprego, a fome, a crise econômica traz à tona a nossa subjetividade nua e crua. As crianças e adolescentes vivem essa realidade de diversas formas. Sentem falta do convívio, dos amigos, dos professores e funcionários, do recreio, das brincadeiras e de todo aquilo que os fazem crescer como seres humanos.
A educação nesse período, e em especial no pós-pandemia, não deve ter como horizonte as perguntas formuladas no início desse texto: quando vamos retornar? Como será esse retorno? O ano letivo será prorrogado? O ano letivo será suspenso? As atividades remotas serão equivalentes aos dias/carga horária? Nesse momento e em um eventual retorno, qual deve ser a prioridade pedagógica? São perguntas mesquinhas diante do maior desafio da nossa geração.
A pergunta a ser perseguida por todos nós é: Como vamos nos reconstruir enquanto pessoa, sociedade e educação? Mais uma vez a escola vai precisar ser política, crítica e reflexiva para dar conta de – junto com as novas gerações - compreender o que vem sendo vivido, as crises e a construção de alternativas. A importância da solidariedade, da humanidade, do cuidado com a saúde, do cuidado de si e do outro, da preservação da natureza, da construção de uma economia soberana voltada aos mais pobres. A escola vai precisar ser o espaço da “escuta das urgências” dos educandos, da saúde mental das crianças e adolescentes, do desenvolvimento pessoal e coletivo das subjetividades de cada um.
Infelizmente, ainda estamos presos às perguntas mesquinhas do início desse texto e aos conteúdos da educação remota, exatamente por isso, o pensamento de Paulo Freire é mais atual do que nunca!


Pedagogo, psicopedagogo e professor da educação básica em Canoas/RS



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