A POLÍTICA NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO E O LIVRO DIDÁTICO NA EDUCAÇÃO INFANTIL: UM PASSO ATRÁS.
Cleber Melo da Silva*
No
dia 21 de maio de 2020 foi publicado, no Diário Oficial da União, o
Edital N.º 02/2020 do Ministério da Educação que tem por objetivo
iniciar o processo de aquisição de obras didáticas, literárias e pedagógicas do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) para 2022. A novidade do edital é a previsão de aquisição de livro didático para a educação infantil. A
medida reascendeu o debate no meio acadêmico, nas instituições
escolares, entre especialista e no conjunto da sociedade: É adequado
usar livro didático na Educação Infantil?
O
documento prevê a oferta de livro didático para professores e
crianças da pré-escola (4-5 anos); livro didático para professores
da creche (0-3 anos); livro de apoio pedagógico para professores da
educação infantil. Contudo, o que suscita importantes debates não
é o fato de ter disponíveis novos materiais de apoio para
professores e crianças, mas sim uma sustentação clara e direta –
descrita no edital e nos materiais de orientação - de mudanças no
trabalho pedagógico da educação infantil através da inclusão do
livro didático nessa etapa da educação básica.
De
acordo com o MEC a obra de apoio pedagógico é um “guia de
preparação para a alfabetização” com o objetivo de estar
“favorecendo a preparação para a alfabetização”. No decorrer
do documento lemos “a prática educativa nessa etapa deve ser
dotada de intencionalidade pedagógica (...) de modo a garantir a
preparação das crianças para a alfabetização formal e para o
domínio de competências matemáticas mais complexas, por meio da
promoção de práticas de literacia e numeracia emergente”. Ainda
no texto é possível identificar conceitos e conteúdo a ser
trabalhados em literacia como: compreensão textual; conhecimento
alfabético, consciência fonológica e fonêmica, entre outros. Ou
seja, há uma antecipação da sistematização do processo de
alfabetização típico dos anos iniciais do ensino fundamental e uma
mudança no conceito, na função e na prática pedagógica
característica da Educação Infantil.
A
proposta apresentada pelo Ministério compõe uma articulação de
ações direcionadas ao processo de alfabetização, em especial a
Política Nacional de Alfabetização e o Programa “Tempo de
aprender”, que prevê, entre outras coisas, uma “nova”
abordagem e uma antecipação do processo de sistematização das
aprendizagens em escrita e leitura, dizendo eles, estar amparado em
evidências robustas e práticas internacionais.
Educação
Infantil: Preparação para a alfabetização?
Preparar
para a alfabetização não é introduzir, de forma sistematizada, um
conjunto de conteúdos ligados ao processo de decodificação da
língua ou antecipar essas práticas. Existe um conjunto de ações
pedagógicas que precisam ser trabalhadas com crianças de 0-5 anos
para que possam se desenvolver e iniciar a sua caminhada no processo
de alfabetização nos primeiros anos do ensino fundamental.
A
Educação Infantil é o espaço privilegiado para as manifestações
infantis e as suas interações, onde a linguagem é o centro da
proposta pedagógica. A linguagem é entendida como enunciação,
expressão, manifestação da subjetividade da criança. É o lugar
da voz da criança, suas narrativas, formas de ver, sentir e conhecer
o mundo. É a linguagem que se registra com o corpo, com desenhos,
pinturas, colagens, modelagens, dramatizações e brincadeiras. A
Educação Infantil é a humanização através da linguagem.
A Educação Infantil é, também, o momento-espaço-estímulo para o desenvolvimento neuropsicológico das crianças. Os estudos em neurociência e educação nos alertam para “janelas de oportunidades” vividas na primeira infância. A proposta pedagógica deve estabelecer como uma das suas prioridades desenvolver o conjunto dos aspectos ligados às funções cognitivas e executivas: os processos atencionais, em especial a atenção sustentada; memória; linguagem; percepção sensório-motora; raciocínio; organização; memória operacional; processamento.
A Educação Infantil é, também, o momento-espaço-estímulo para o desenvolvimento neuropsicológico das crianças. Os estudos em neurociência e educação nos alertam para “janelas de oportunidades” vividas na primeira infância. A proposta pedagógica deve estabelecer como uma das suas prioridades desenvolver o conjunto dos aspectos ligados às funções cognitivas e executivas: os processos atencionais, em especial a atenção sustentada; memória; linguagem; percepção sensório-motora; raciocínio; organização; memória operacional; processamento.
A
combinação do desenvolvimento da linguagem, das funções e
capacidades cognitivas e a vivência social são os elementos
fundamentais, primários e indispensáveis para qualquer processo de
aprendizagem sistematizado que venha à posteriori, como o da
alfabetização nos anos iniciais do ensino fundamental, por exemplo.
“Evidências
robustas e práticas internacionais”
O
Ministério da Educação, nos cadernos da Política Nacional de
Alfabetização, apresenta o conjunto das ações voltadas para os
primeiros anos da vida escolar das crianças. É ali que encontramos
as evidências robustas e práticas internacionais apresentadas como
garantia das ações propostas pelo MEC para a área.
As
evidências robustas se sustentam naquilo que chamamos de Ciência
Cognitiva da Leitura: campo interdisciplinar que abrange as
diferentes disciplinas que estudam o cérebro, como a psicologia
cognitiva e a neurociência cognitiva (as mesmas áreas que nos
chamam a atenção para as janelas de oportunidades de
desenvolvimento já citadas nesse artigo). A ciência cognitiva da
leitura identifica que não se aprende a ler como se aprende a falar.
A leitura e a escrita precisam ser ensinadas de modo explícito e
sistemático.
Tais evidências já são conhecidas por pedagogos, psicopedagogos e educadores em geral, não se tratando de uma novidade no cenário da alfabetização do Brasil. Não restam dúvidas aos professores brasileiros se a leitura e a escrita precisam ser ensinadas de modo explícito e sistemático ou não. A questão é quando e em qual espaço. Esse é o grave erro da proposta apresentada pelo Ministério: antecipar o processo sistemático de alfabetização; desconfigurar as características da Educação Infantil; negligenciar o processo de desenvolvimento neurocognitivo da primeira infância vivenciado nessa etapa da educação básica.
Tais evidências já são conhecidas por pedagogos, psicopedagogos e educadores em geral, não se tratando de uma novidade no cenário da alfabetização do Brasil. Não restam dúvidas aos professores brasileiros se a leitura e a escrita precisam ser ensinadas de modo explícito e sistemático ou não. A questão é quando e em qual espaço. Esse é o grave erro da proposta apresentada pelo Ministério: antecipar o processo sistemático de alfabetização; desconfigurar as características da Educação Infantil; negligenciar o processo de desenvolvimento neurocognitivo da primeira infância vivenciado nessa etapa da educação básica.
Para
justificar esse erro, o Ministério apresenta como exemplo as
práticas internacionais, em especial o caso da França. A École
Maternalle (Escola Maternal) na França compreende a escolarização
obrigatória e pública a partir dos 03 anos de idade. No final dos
1990 as autoridades francesas começaram a se preocupar com o
desempenho dos seus estudantes da École Élémentaire, Collège e
Lycée em avaliações nacionais e internacionais. Então, a partir
dos anos 2000, começaram a implementar algumas mudanças na Escola
Maternal, entre elas, introduzir aspectos pedagógicos ligados à
antecipação do ensino sistemático da língua como forma de
melhorar seu desempenho nas avaliações externas. Em 2008, A Escola
Maternal começou a priorizar o aspecto da leitura e escrita na sua
proposta pedagógica.
O
interessante é que, ao citar essa prática internacional como
comparativo, o Ministério tenha esquecido de mencionar três pontos.
O primeiro é que passados 20 anos das mudanças na École
Maternalle, o desempenho em leitura oscilou para baixo de acordo com
os dados do PISA. E a França caiu nove posições no Ranking
Internacional do PISA entre 2000 e 2018.
O
segundo aspecto não mencionado pelo MEC, na comparação com a
França, é sobre a abrangência da educação infantil. Na França,
a universalização do acesso à escola por crianças de 4-5 anos se
dá a aproximadamente três décadas. No caso das crianças de 3
anos, a universalização existe desde o final dos anos 1990. Já no
Brasil, de acordo com IBGE, apenas um terço das crianças de 0-3
anos tem acesso à Educação Infantil. Estima-se que 9 milhões de
crianças de 0-3 anos estejam fora da escola. O atendimento
educacional, em pré-escola, de brasileiros de 4-5 anos, que tem sua
matricula obrigatória desde 2016, ainda não atingiu a
universalização, estando no patamar de 94% da demanda. No Brasil é
necessário, primeiro, ter as escolas de educação infantil antes de
compará-las com práticas internacionais. Isso desconsiderando os
problemas estruturais das escolas existentes, como a falta de
saneamento, de água potável, transporte escolar, entre outras
dificuldades.
O
terceiro aspecto omitido pelo MEC, na comparação com a França, é
sobre a formação e planejamento docente. As quartas-feiras são
reservadas para o planejamento e formação docente. No Brasil, em
junho de 2020, o Supremo Tribunal Federal proferiu uma decisão em
prol da lei de 1/3 de planejamento docente, questionada e apontada
por alguns Estados da federação como inconstitucional.
Considerações
A
inclusão de livro didático para a Educação Infantil no edital do
PNLD 2022 é mais um passo dado pelo Ministério em direção a
mudanças prejudiciais empenhadas contra a educação infantil,
desconfigurando sua trajetória histórica, negligenciando a riqueza
dessa etapa e colocando em risco o desenvolvimento adequado das
crianças de 0-5 anos.
Como
vimos, tanto as práticas internacionais como o que há de mais
avançado em pesquisa no campo da educação infantil e na
alfabetização e letramento sugerem que a proposta do Ministério da
Educação do Brasil é inadequada, sem fundamentação e
contraditória, omitindo as reais necessidades da educação infantil
do país.
Estamos
diante de um enorme desafio: resgatar a função social da escola,
seus espaços formativos, sua singularidade, suas concepções e
características político-pedagógicas bem como sua materialização
como direito subjetivo de todos brasileiros.
* Pedagogo, psicopedagogo e professor da educação básica em Canoas/RS.
Parabéns Cleber por tua excelente reflexão,tua prática aliada a teoria confirmam que este não é o caminho.Afetivo abraço, tua prof.Dra.Gilca Kortmann
ResponderExcluirExcelente artigo. Professor Cleber nós trás uma reflexão fundamentada na nossa realidade além de indicar os equívocos deste governo às políticas para a educação infantil.
ResponderExcluirExcelente reflexão. Obrigada pelas contribuições .
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